- Tempo Para Você
Será que está tudo bem não caber na própria rotina?
Não bastasse a falta de produtividade no trabalho, essa mesma sensação é levada para casa e para os momentos de lazer.

Foto: Evie S
Inúmeros compromissos levam as pessoas a terem uma vida ocupada e aparentemente preenchida, além de um cotidiano cheio de pressa. Na lista de tarefas está, majoritariamente, o trabalho e a família e suas respectivas demandas. A validação de sucesso das últimas décadas é, curiosamente, a falta de tempo. Nessa jornada não há espaço para se olhar no espelho, observar o corpo, refletir sobre a trilha do próprio caminho. Viver assim é possível?
Se você acompanha os outros (e até a si mesmo) apenas nas redes sociais, parece que sim. Vida de novela, o sonho do brasileiro, é o termo usado nas redes sociais para os posts com fotos de lugares paradisíacos e exclusivos ou mesmo do rótulo do vinho consumido em casa. O titular do perfil, meses atrás, poderia nunca dar as caras, afinal não teria corretivo que disfarçasse as olheiras, tampouco milagre que camuflasse o estado de exaustão. Mas, os filtros foram criados e tudo se resolveu. O rosto (e a vida digital) agora é digno das gravações do famigerado Manuel Carlos.
Com este combo, não é de se estranhar que os resultados de um estudo divulgado em 2020, pela Cuponation, revelem que os brasileiros gastam em média 5h por dia conectados a sites e aplicativos. E quem não iria querer permanecer neste mundo perfeito? Ninguém. A pergunta se repete, no entanto, é possível viver neste ideal?
A título de comparação, países como França e Alemanha usam 2,6 horas diárias na internet.
Novela é um escapismo perfeito para a realidade, o problema é quando ela se mistura com a vida real e gera a perda de percepção de que "é de mentirinha". O resultado é uma constante sensação da falta de tempo, dinheiro, sucesso, amor, de uma dose de ficção.
"A hiperexposição das redes (sociais) nos distancia muito da realidade do que somos: mostramos apenas o melhor de nós mesmos, em uma exigência de felicidade permanente (...) com a falsa ilusão de que o olhar do outro é necessário para garantir sua existência.", é a fala do psiquiatra e psicanalista Marcelo Veras para a BBC.
No mundo perfeito a emoção é a angústia, mas ao que parece pelo menos dá para fugir da realidade.
O cotidiano comum
A vida real do brasileiro é marcada por uma cultura de medição de competência através do quantitativo do trabalho. A jornada semanal do empregado é fixada numa média entre 40h e 44h semanais. No entanto, no cotidiano acaba sendo muito maior. Há quem faça 12h diárias, totalizando 60h/semana. Já, na Noruega, por exemplo, que foi considerado o país mais feliz do mundo em 2017, segundo o Relatório Mundial da Felicidade, realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), tem uma carga média de 33h/semanais.
Dica ao leitor
1. Assistir filmes fora do roteiro americano/brasileiro para observar o cotidiano de outras culturas.
2. Outra aposta pode ser nos livros como Paris é uma festa, de Ernest Hemingway, ou qualquer título de Elena Ferrante.
Os dados sobre a jornada brasileira são relevantes não só pelo excesso aparente, mas principalmente quando comparados a países desenvolvidos. Esta rotina inclui uma alta taxa de insatisfação. Segundo pesquisas do Instituto Locomotiva e o Grupo LMT - Loyalty & Trade Management, 56% dos brasileiros estão insatisfeitos com o seu trabalho e 64% gostariam de trabalhar em áreas diferentes.
A insatisfação com o trabalho é uma das principais razões para a baixa produtividade, segundo dados de pesquisa da Universidade de Berkeley sobre felicidade no trabalho. A prova disso é que segundo um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, de 1981 a 2018, a renda per capita do País cresceu 0,9%, enquanto a produtividade avançou apenas 0,4%.
Diante desse cenário, não poderia ser outro o resultado do cotidiano vivenciado no país senão o da letargia em fazer inclusive atividades para si. Não bastasse a falta de produtividade no trabalho, essa mesma sensação é levada para casa e para os momentos de lazer.
Na contramão do que seria um alento à disposição diária, acaba não faltando motivos para as pessoas lotarem suas agendas de compromissos "inadiáveis", trabalhos e redes sociais. Uma pausa para refletir sobre o tempo para si mesmo pode gerar incômodos, além de uma falsa sensação de produtividade face às inúmeras tarefas que preenchem todos os espaços de suas agendas.
Saindo do desconforto
Ao permanecer no caos e no padrão de funcionamento, os ocupados (do workaholic aos super familiares) se envolvem mais e mais com o desconforto. Segundo a psicóloga e pesquisadora, Tara Bennet Goleman, os seres humanos criam padrões emocionais como perfeccionismo, negativismo, crítica em excesso e tentativa de controle. É o que ela chama de hábito emocional.
Se você se mantém dentro deste círculo de comportamento, o desconforto passa a trazer a sensação de segurança. O hábito faz com que aquele incômodo seja conhecido.
O que é possível fazer?
Há o caminho de aceitar a imperfeição ao invés de mergulhar na zona de (des) conforto. Parece distante da temática tempo, mas se afastar dos hábitos emocionais que te levam a buscar perfeição e se aproximar dos que te tornam mais humano desperta a sensação de merecimento. Quanto mais cedo se descobrir o quanto você e seu tempo valem a pena, mais plena será a vida.
"Você descobrirá que é digno de amor, aceitação e alegria todas as vezes que me vir praticando o amor - próprio e acolhendo minhas próprias imperfeições", Brené Brown, pesquisadora sobre vulnerabilidade, no livro A coragem de ser imperfeito.
O trabalho, o celular, as demandas familiares. Tudo isso é justificativa para a falta de tempo e da percepção de merecimento do mesmo. Qual é a resposta para "o que te faz lotar a agenda de verdade?". Reflita de forma honesta. Pode ser a vontade de não apenas ser perfeito, mas ser perfeito perante o outro. Pode ser fugir de um trabalho não muito feliz. Pode ser o medo de escassez.
O pano de fundo de todas estas respostas é um só. Ocupar o tempo para nunca jamais estar em contato com você mesmo, suas imperfeições e suas banalidades.
Não está tudo bem não se caber na própria rotina. A realidade, por vezes, é dura. Mas, viver fora dela é uma escolha que leva o ser humano a sonegar tempo a si mesmo, ainda não é crime, mas poderia ser.
Sendo assim, por que não normalizar os pequenos passos que às vezes de tão exageradamente bestas provocam alegrias? Você merece!